sexta-feira, 16 de julho de 2010

Axiomas de Peano para os números naturais



A matemática, como toda ciência, pode ser pensada como um muro. Cada tijolo é uma teoria, um ramo do saber, e cada tijolo sucessor só o é pois consegue se apoiar nos anteriores, de modo que existe uma continuidade crescente. Os matemáticos são os pedreiros, que colocam e posicionam os tijolos, e um outro tipo de trabalhador, aquele que "passa a massa", que fixa o novo tijolo ao antecessor com uma substância concreta, é conhecido como o lógico. (Vamos supor, para todos os efeitos, que existe distinção entre matemático e lógico).


A analogia acima é um exemplo, mutatis mutandi, de como a matemática funciona. Geralmente os matemáticos se baseiam em conhecimentos pré-existentes para criar suas teorias, pois eles complementam e fornecem solidez  às novas ideias. Isto é, mais um tijolo é erguido sobre os outros. O próprio Newton escreveu para Robert Hooke, aquele mesmo da lei de Hooke, que "Se vi mais do que você e Descartes, é porque me coloquei sobre os ombros de gigantes" quando criou o cálculo diferencial e integral. Ainda que a teoria de Newton tenha sido de fato inovadora, no sentido de dar um tratamento sistemático às descobertas de Fermat, Barrow, Arquimedes e outros, podemos dizer que não foi rigorosa no sentido de que muitos dos processos envolvidos ainda eram obscuros, mas funcionavam. Analogamente, é possível dizer que Newton posicionou muito bem seu tijolo, mas ninguém passou a argamassa nem concretou aquele imponente pedaço do muro.

O ponto no qual quero chegar, e a analogia vai servir bem para entendê-lo, é o seguinte: "Em onde os primeiros tijolos se sustentam?". A pergunta, embora simples, tem sua resposta: "No chão, oras!". É ai que nos enganamos pela simplicidade da analogia, e ela falha. O chão sobre o qual a matemática se ergue é muito mais complicado que parece. Primeiro, assumimos implicitamente, na analogia, que a matemática, sendo um muro, só crescia numa só direção. Isso é errado, pois existem duas possibilidades: Se conhecemos alguma parte ou teoria da matemática, é possível ou construir/ampliar novas ideias à partir dela (Newton assim o fez) ou buscar simplificá-la, abstraí-la logicamente. A este último procedimento damos o nome de filosofia da matemática, cujo estudo se volta para as questões fundamentais da matemática. Não se constrói nada inovador, mas no fim ela leva a muitas descobertas que acabam contribuindo para os outros ramos. Aqui cabe a distinção entre matemático e lógico. No fundo são de fato a mesma coisa, mas efetivamente o lógico se preocupa com a filosofia da matemática, ao passo que o matemático se preocupa com outras possibilidades (aplicações, etc). Pode-se até dizer que todos os lógicos são matemáticos puros, enquanto que nem todos os matemáticos puros são lógicos. Bem, mas essa não é a discussão que quero chegar.

Nesse sentido, do objeto de estudo matemático poder se estender por dois lados, os lógicos se preocuparam em buscar o chão daquela nossa analogia. Isso porque a matemática vive num moto perpétuo, isto é, o conhecimento surge rapidamente e cada nova descoberta  precisa ser logicamente correta, livre de subjetividades, afinal, essa é uma ciência que exige um método para bem raciocinar, como disse o pai dos eixos cartesianos Descartes. Só para exemplificar, antigamente muitas teorias emergiam mediante o uso de argumentos heurísticos (o próprio Newton assim fez) e conclusões apressadas. Sendo os conceitos totalmente novos, era extremamente necessário um amparo racional para que toda essa base erguida não se arruinasse.

Giuseppe Peano, matemático italiano que nasceu na metade do século XIX e morreu no século XX, modernizou a lógica matemática e fundou a teoria dos conjuntos. Essa teoria dos conjuntos foi uma maneira encontrada por Peano para reduzir os conceitos matemáticos à axiomas da lógica, fundamentando o solo em que a matemática repousa e eliminando as fontes de erro lógico decorrentes de argumentos incertos. 

Peano começou sua teoria partindo do "objeto" matemático mais simples que parecesse. Naturalmente, pensou na série dos números inteiros positivos, o conjunto Z  = { 0, 1, 2, ..., n, n+1, ...}. Apesar de natural, o conceito de número é algo recente. Por exemplo, o 0 só foi introduzido na Europa no século XIII. Mesmo assim, os números, como números, são conceitos estranhos e abstratos, mas aceitos.
Peano buscou então fazer uma "descida" até primitivas lógicas que não dependam de uma definição, no sentido de pertencer a alguma classe já conhecida, como os números arábicos. Ele pensou que se encontrasse um sistema lógico partindo dos números naturais, ele seria válido para toda a matemática, já que  a matemática pura tradicional, inclusive a geometria analítica, eram derivadas de proposições referente às propriedades dos números naturais. Em outras palavras, a validade do sistema para os números naturais implica na validade do sistema para todo o resto.
Com essa isso em mente, o passo seguinte era encontrar um menor conjunto de premissas e axiomas que definisse o sistema. Peano mostrou que para isso precisaria de 3 conceitos lógicos, além de 5 axiomas. Essa foi uma idéia inovadora e de grande importância para a matemática.

Os 3 conceitos lógicos no sistema de Peano, chamado de aritmética de Peano, são:

0, número, sucessor.

apesar de número entrar nessa definição, ele não é entendido como uma entidade conhecida assim como os números em si. Isso é assunto para outro post. Entende-se a idéia de sucessor como sendo o numero seguinte na ordem natural (esta é uma afirmação fraca também, e pode ser assunto para outro post), isto é, 1 é sucessor de 0, 2 é sucessor de 1, e assim por diante.
Os cinco axiomas de Peano são:

  1. 0 é um número.
  2. O sucessor de qualquer número é um número.
  3. Dois números diferentes nunca têm o mesmo sucessor.
  4. 0 não é sucessor de qualquer outro número
  5. Qualquer propriedade que pertença a 0 e também ao sucessor de qualquer número que tenha essa propriedade pertence a todos os números


Notemos que a propriedade 5 permite definir o método de indução matemática. É possível verificar que as operações matemáticas são determinadas pelas 3 primitivas e pelos 5 axiomas. Por exemplo: Para definirmos a operação básica de soma, partindo de um número a, definimos a + 0 = a e dizemos que a+(b+1) é sucessor de (a+b) (apesar de não ter dito, x+1 pode ser entendido como sucessor de x) para todo b. Em outras palavras, partindo de 0, é possível "contar" quantas sucessões foram precisas para se chegar a a e a b.  
O número expresso por a+b é então o número equivalente a contar essas sucessões repetidas, partindo do 0.

Apesar de elegante, o sistema de Peano é falho no sentido de que qualquer sucessão ordenada, que não tenha termos repetidos, etc, se encaixa nas definições. Não podemos distinguir entre diferentes interpretações de 0, número e sucessor. É possível definir 0 como 10, 1 como 11. Ou 0 como átomo, 1 como molécula, etc. e mesmo assim os axiomas são válidos. Esse é assunto pra outro post também. O objetivo desse foi dar uma pincelada sobre como essa empreitada de reduzir matemática à lógica foi feita.

Bom, não é preciso falar que esses problemas foram contornados por outros matemáticos, fazendo a "lógica" prevalecer.

É isso. 
Referencia: Bertrand Russel: Introdução à filosofia matemática.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagem em destaque

Quais os melhores livros de Cálculo 1?

Uma dúvida muito comum de quem acabou de entrar na faculdade de exatas é qual livro de cálculo seguir e adotar como referência. Consulta...